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04-02-2003   Temáticas específicas
A REPRESENTAÇÃO DO ESTADO PELO Mº Pº
Comentário ao acórdão do STJ de 04.02.2003 (Agravo nº 3490/02-1). Sugestões de procedimento
Comentário ao acórdão do STJ de 04.02.2003 (Agravo n.º 3490/02-1). Sugestões de procedimento

Por acórdão de 04.02.2003 (Agravo n.º 3490/02-1, provindo do Tribunal da Relação do Porto), o Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se no sentido de que o Ministério Público não pode instaurar acções cíveis, em representação do Estado Português, sem que exista uma decisão prévia do competente órgão da Administração Central a determinar ou a autorizar tal propositura. Ainda segundo o mesmo aresto, a tomada de iniciativa quanto à propositura de uma acção, nestes casos, cabe dentro dos poderes de direcção dos serviços e da actividade da administração, sendo, pois, própria do Governo, devendo ser, normalmente, decidida pelos ministros [art.201.º-2-b) da CRP], cabendo ao Ministro da Justiça, por intermédio do Procurador-Geral da República, transmitir as instruções de ordem específica correspondentes.

O entendimento de que o Ministério Público só deveria propor acções cíveis em representação do Estado caso tal lhe fosse solicitado pelo correspondente departamento da Administração Central já era corrente no âmbito desta magistratura.

Todavia, não tendo, até à prolação daquele acórdão, a questão sido abordada jurisprudencial ou doutrinariamente, sempre o Ministério Público tem aceitado propor as acções cíveis que lhe são solicitadas pelos diversos departamentos da Administração Central (e.g., departamentos de contencioso do Exército, da Marinha, da Força Aérea, da PSP, da GNR, da PJ, Direcção-Geral do Património, Direcção-Geral do Tesouro), sem questionar se os órgãos ou agentes que lhe dirigem as solicitações têm, ou não, competência, própria ou delegada, para decidir sobre a propositura ou não propositura das mesmas acções.

Uma vez que é de presumir que, face à publicidade que foi dada ao teor do acórdão referenciado, a questão irá, por certo, ser suscitada em outros processos, importa analisar quais as consequências que poderão decorrer do facto de o Ministério Público ter intentado acções cíveis sem que a decisão sobre a propositura das mesmas tenha sido tomada pelo competente órgão da Administração Central

A decisão sobre a propositura ou não propositura de uma acção judicial por parte da Administração Central não integra um «acto administrativo», no sentido que é tradicionalmente atribuído a este pela doutrina e que ficou consignado no nosso Código do Procedimento Administrativo (CPA). Na verdade, e para os efeitos do Código do Procedimento Administrativo, só se consideram actos administrativos as decisões dos órgãos da Administração que, ao abrigo de normas de direito público, visem produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta (art. 120.º do CPA). A decisão, por parte do poder administrativo, de sujeitar a solução de um litígio ao poder judicial não visa, imediatamente, produzir efeitos num caso concreto. Os efeitos, no caso concreto, para os particulares (e para a própria Administração) não decorrem daquela decisão, mas sim da sentença judicial que oportunamente vier a solucionar o litígio. Uma vez que, com a decisão, tomada pela Administração, de propor uma acção judicial e de dar instruções ao Ministério Público para a sua propositura, a mesma não está a estabelecer qualquer relação com os particulares (cfr. art. 2.º-1 do CPA), nem a pretender produzir, imediatamente, quaisquer efeitos jurídicos numa determinada situação individual e concreta, tal decisão é um acto meramente interno da Administração, que fica fora do quadro do art. 1.º-n.º 1 e do art. 120.º do CPA.

A tomada de tal decisão não tem, assim, que obedecer ao formalismo próprio do procedimento administrativo consignado no CPA.

Todavia, tendo em consideração o disposto no art. 2.º-n.º 5 do CPA, a actividade, mesmo meramente interna, da Administração deve considerar-se sujeita aos princípios gerais da actividade administrativa, bem como às normas que concretizam princípios constitucionais, constantes do CPA.

Em matéria de competência, decorrem do CPA os princípios da legalidade (a competência é definida por lei ou regulamento), da irrenunciabilidade e da inalienabilidade – art. 29.º do CPA.

Em matéria de forma, decorre do CPA o princípio geral de que os actos devem ser praticados por escrito, desde que outra forma não seja prevista por lei ou imposta pela natureza e circunstâncias do acto – art. 122.º do CPA.

No âmbito da Administração Central, os poderes respectivos incumbirão, primariamente, ao Governo, sendo exercidos pelos ministros respectivos [arts. 199.º-d) e 201.º-2-a) da CRP e DL 120/2002, de 3 de Maio], a não ser que, por lei ou regulamento, os mesmos sejam atribuídos a outros órgãos, ou que exista uma relação de delegação de poderes ou de substituição legalmente estabelecida – arts. 29.º e 35.º e sgs. do CPA.

As questões que a doutrina decorrente do acórdão do STJ pode vir a suscitar, em concreto, são, essencialmente, duas: em primeiro lugar, consequências processuais decorrentes do facto de o Ministério Público intentar uma acção judicial sem que a Administração Central tenha proferido qualquer decisão nesse sentido ou contra a vontade expressa da mesma; em segundo lugar, quais as consequências decorrentes de o Ministério Público intentar uma acção judicial por decisão de um órgão ou agente da Administração Central sem competência, própria ou delegada, para decidir sobre o assunto.

O Ministério Público, que dispõe, simultaneamente, de competências judiciárias e de competências materialmente administrativas, é um órgão do Estado não integrado na Administração Pública, constituindo, na vertente administrativa, um órgão autónomo (arts. 202.º a 220.º da CRP, 2.º-n.º 1 do EMP e art. 2.º-n.º1 – parte final, do CPA), doutrinariamente classificado como órgão independente do Estado (Cfr. Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e J. Pacheco de Amorim, in Código do Procedimento Administrativo Comentado, 2.ª edição, págs. 676, 70 e 71.

Sendo assim, se o Ministério Público, órgão não integrado na Administração Pública, praticar actos compreendidos nas atribuições desta, decidindo, contra a vontade ou no desconhecimento da Administração Central, pela propositura de determinada acção judicial contra um particular, tal decisão, enquanto acto materialmente administrativo, será nula, por força do disposto nos arts. 2.º-n.º 5 e 133.º-n.º 2-b) do CPA – Cfr. Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e J. Pacheco de Amorim, in Código do Procedimento Administrativo Comentado, 2.ª edição, págs.643 a 645.

A propositura de uma acção judicial nessas condições irá determinar a procedência da excepção dilatória prevista no art. 494.º-d) do CPC (falta de autorização ou deliberação que o autor devesse obter), excepção essa de conhecimento oficioso, que determinará a absolvição do réu da instância [arts. 495.º e 288.º-1-e) do CPC].

A idêntica solução se chegará se a decisão sobre a propositura da acção for tomada por ministério diferente daquele a que o litígio respeita [art. 133.º-n.º 1-b) do CPA), situação essa de verificação pouco provável

Já no caso de a decisão sobre a propositura da acção ter sido tomada por órgão integrado no ministério respectivo, mas que não disponha de competência, própria ou delegada, para a tomar, a sanção deverá ser a da mera anulabilidade – arts. 2.º-n.º 5 e 135.º do CPA.

Uma vez que se trata de mero acto interno da Administração Central, insusceptível de produção de qualquer efeito directo na esfera jurídica dos particulares, o mesmo não está sujeito ao formalismo próprio do procedimento administrativo, consignado no CPA, embora esteja abrangido pelo regime previsto no art. 2.º-n.º 5 do mesmo Código.

Por se tratar de acto meramente interno, que não é directamente lesivo de qualquer direito ou interesse legalmente protegido dos particulares, não cabe impugnação do mesmo, por estes, quer no plano gracioso (art. 158.º do CPA), quer no contencioso ( art. 25.º da LPTA – DL 267/85, de 16 de Julho). Só em situações muito excepcionais (académicas, mesmo) a decisão sobre a propositura de uma acção judicial contra um particular poderia determinar uma lesão directa e imediata em direitos ou interesses legalmente protegidos de particulares, caso em que estes teriam legitimidade para impugnar o acto respectivo.

A distribuição da competência, para a prática de actos meramente internos, pelos diversos órgãos de determinada pessoa colectiva pública (no caso, o Estado – Administração Central), não afectando directa e imediatamente os particulares, visa, apenas, acautelar o bom funcionamento da própria Administração, tendo em consideração a prossecução das atribuições que lhe estão legalmente conferidas. A anulabilidade dos actos meramente internos decorrente da violação dessas regras de competência, resultante do princípio geral consignado no art. 135.º do CPA, só poderá, pois, ser arguida pelo próprio Estado – Administração Central, por força do disposto nos arts. 287.º-n.º 1 e 295.º do Código Civil. Por outro lado, o órgão competente para tomar a decisão em causa poderá, sempre, ratificar o acto, com eficácia retroactiva – Cfr. art. 137.º-n.ºs 3 e 4 do CPA.

Sendo assim, o vício referido não é de conhecimento oficioso, nem pode ser arguido, em juízo, por via de acção ou de excepção, pelos particulares, e designadamente pelas pessoas demandadas na acção que o Ministério Público intentou em representação do Estado.

Nestes termos, afigura-se-me que, desde que a propositura de uma acção judicial seja solicitada ao Ministério Público, por escrito, por um órgão integrado no ministério respectivo (isto é, no ministério no âmbito do qual se integra o interesse a discutir em juízo) – caso, e.g., do Director-Geral da PSP ou do Comandante-Geral da GNR, no tocante a acidentes de viação em que intervieram viaturas de tais corporações - o facto de tais órgãos não disporem, eventualmente, de competência, própria ou delegada, para tomarem a decisão sobre a propositura da acção não obsta a que o Ministério Público possa, desde logo, avançar com a sua propositura, no pressuposto de que o vício de tal acto, meramente interno, não poderá ser arguido por outrem que não o próprio Estado

O que se refere relativamente à propositura de acções terá aplicação, outrossim, no âmbito das contestações, pelo Ministério Público, de acções propostas contra o Estado. Tradicionalmente, o Ministério Público solicita ao departamento respectivo da Administração Central os elementos indispensáveis à elaboração da contestação. Logo que o departamento, integrado no competente ministério, remete tais elementos ao Ministério Público, para que este conteste a acção, fica o Ministério Público legalmente habilitado a contestá-la, sem que a contra-parte possa arguir a eventual incompetência relativa do departamento que instruiu o Ministério Público para contestar a acção

Uma vez que só em casos manifestamente anómalos se poderá ter verificado a intervenção do Ministério Público, na propositura ou contestação de acções em representação do Estado, sem que tal lhe fosse solicitado por parte de órgãos integrados no competente ministério, não se me afigura que a doutrina decorrente do acórdão do STJ acima referido venha a acarretar consequências processuais significativas ao nível do contencioso do Estado neste Distrito Judicial

Pelo que vem exposto, e em conclusão, afigura-se-me conveniente que os magistrados do Ministério Público passem, de futuro, sempre que se coloque a necessidade de representação em juízo do Estado – Administração Central, a exigir:
No caso de propositura de acções, que a mesma lhes seja solicitada expressamente, por escrito, por departamento da Administração Central integrado no correspondente ministério;

No caso de contestação de acções, que a Administração Central, através de departamento integrado no correspondente ministério, lhes comunique, por escrito, a vontade de que a contestação seja deduzida (com eventual reconvenção, se for caso disso) – comunicação essa que convirá que seja explícita, embora a mesma possa decorrer, implicitamente, do mero envio ao Ministério Público (por solicitação deste, logo que citado, como vem sendo habitual), por parte do mesmo departamento, dos elementos factuais e probatórios indispensáveis à elaboração da contestação, acompanhados de ofício em que se consigne, de alguma forma, que tais elementos se destinam à elaboração de tais peças processuais.

O Procurador da República,
(Fernando Bento)
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